martes, 17 de noviembre de 2009

AMIZADE OU CRUELDADE


Chamava-se António Rui Garrido,digo chamava-se porque actualmente nada sei sobre ele,se está vivo,se foi para o Canadá como tinha previsto,mas isso não tem importancia,porque ele se cruzou no meu caminho um dia,e estará sempre presente na minha memória,enquanto tenha um resquício de vida.
Era do quadro da Empresa Ilidio Monteiro, como eu, só que ele era Administrativo e eu Técnico.
Aterrou um dia,sei que era verão porque estávamos fora no Campo,tronco nus e de calções, e seriam as 23horas, esperávamos o Correio que eram portadores os expatriados que vinham de Portugal para a Líbia.Eu tinha-me recusado a voltar ao Aeroporto, por pânico a ter de encarar-me com a um representante do diabo com boina vermelha e uniforme caqui.
Já o conhecia da empresa, porque nos cruzávamos muitas vezes na hora do café,e no almoço.Quando o vi,reparei que ele tinha um olhar perdido e inquieto como se pergunta-se a si mesmo,"onde estou eu?onde me meti?".
Também poderia dizer que eu tivera a mesma expressao quando cheguei, mas estaria a mentir, porque eu nao conhecia o medo,mas sim uma vontade irresístivel de aventuras, aprender e conhecer,ainda que sim era cauto nas minhas atitudes para com os autóctenes, pois já tinha tido um pequeno desgosto, que está descrito em "Há Miradas que Matam".
Eu fazia parte de um grupo de pessoas,que se movia por interesses culturais,musicais e protecção.
Um era o finado Meca Alegria,que era administrativo e um bom amigo,ex-jornalista do Diário de Notícias,Comunista ferranho que nao tinha qualquer afinidade política comigo pois eu era Pró-Sá Carneiro, António Flores que era manobrador de máquinas, Carvalho que era mecânico e conhecido por nós como o Torres Vedras, por ser natural dali ,o Unhas,nunca soube o nome dele, mas era peculiar pois tinha umas unhas polivalentes nos dois dedos mindinhos, e o ultimo era Lamin, negro natural do Ghana, Muçulmano e que compartia casa comigo e com o Flores.Com esta descriçao se perguntarao que nos unia?.Quiçás,unia-nos o Status Social e Cultural,gostos Musicais e instinto de Protecçao.
Como sempre, nos juntávamos depois do trabalho,para conversar,tocar guitarra, pois tinhamos um grupo musical,que não tinha nome,mas sim tinhamos uma canção com letra e música,que cada vez que a recordo só me apetece morrer de vergonha.Naquele dia ali estávamos nós esperando os expatriados.
Garrido com a sua expressao de "Deus saca-me de aqui" ,o primeiro que fez foi procurar-me entre os 200 portuguses que ali viviam no Campo,vendo a cara de assustado que tinha,aproximei-me dele desejando-lhe as boas vindas e apresentando os meus amigos, que também seriam os dele, a partir daquele instante.
Depois da cerimónia de entrega do correio, que era um espetáculo incrivel, acompanhamos o Garrido na Ceia, que era um costume para os expatriados que chegavam de noite a Sebha.
Durante a ceia,Garrido começou a por em evidência a sua igenuidade com perguntas inconcebíveis para uma pessoa com o minimo grau de cultura,nao só pelo cargo que ía ocupar,mas também pelos estudos que presumia ter.Nós movidos pela rutina e o ócio decidimos explorar esta pequena mina em bruto e divertir-nos um pouco.
Garrido era um indivíduo peculiar era de baixa estatura, mediria o metro e ciquenta e algo,tinha um defeito na vista,pois nao tinha a mirada simétrica, e Meca dizia que ele seria um perigo com uma metralhadora .
Tinha a particularidade de apropiar-se das viaturas,quando se pedia uma emprestado á empresa para passear,pois só nos estavam destinados para o trabalho.Um certo dia depois de nos haverem cedido uma, ele fez-se com o mando dela,e resolveu meter-se pelo deserto a dentro,(ver foto em "A PALAVRA AMIGO"),sentindo-se na pele de Lawrence da Arábia,e advertindo-o das areias movediças, pedimos-lhe que voltasse aos caminhos existentes.Fazendo caso omisso ás petiçoes,acabou por meter o carro numa zona de areias movediças.Enquanto ele tentava sair com a viatura, de onde a tinha metido,que cada vez enterrava-se mais, eu o Meca e o Flores decidimos ir ao nosso Estaleiro, que estava a uns escassos 8 Km a Oeste de onde estávamos, para trazer uma máquina para retirar o carro,abondonando ali o inteligente sem advertir do perigo dos cães selvagens que deambulavam pelo deserto.Lá fomos, e depois de duas horas de caminhada difícil que é andar sobre areia, chegámos ao destino, enchemos o cantil que levava sempre comigo de água fresca,o Flores pegou na máquina e voltámos os três, como três belos príncipes ao resgate da bela donzela perdida no deserto.Qual foi o nosso espanto quando ao chegar nao dissipámos a figura de Garrido, por lado nenhum e ao aproximar-nos da viatura vemos um vulto de um chapéu tipo cowboy sobressaindo do vidro traseiro do carro. Imaginámos logo o que havia sucedido e nao podendo evitar desatámos os três ás gargalhadas,e como seria evidente, a caricata situação já nos serviu para as tertúlias e ser motivo de risos, imaginando como haveria sido o encontro de Garrido com os cães.
Outra vez, estando eu presente, ele acompanhava os doentes do campo ao Tamin, que era o Hospital dos expatriados, assegurando que o seu inglês era bom e fluído, e á pergunta do médico que era Polaco, do que padecíamos, que era uma constipaçao, ele sem medir diz-lhe num inglês claro o seguinte:"My mans are constipation",eu absorto com o que havia escutado disse-lhe "olha lá! sabes o que estás a dizer? que estamos com diarreia!" e expliquei-lhe que constipaçao era "cold" e diarreia "constipation".É claro essa noite e as seguintes foi outro motivo para nos rirmos.
Mas para nós Garrido atingiu o auge do caricaturismo no Aeroporto de Sebha.
Lamin, que era o chófer do minibus que fazia o transporte do Campo a diversos destinos, dos expatriados e não expatriados, ou seja de todos os trabalhadores, um dia, nos advertiu que deveríamos assistir a um “check in” de Garrido no Aeroporto.O “check in” dos bilhetes de avião na Líbia era um espétaculo digno de se ver, porque ao principio não havia ninguém nos balcões das diversas Linhas Aéreas que faziam serviço tanto Nacional como Internacional, a não ser alguns ingénuos Europeus,que faziam bicha para tomar vez, para serem os primeiros em ser antendidos assim que abriam o serviço.Mas no momento em que abriam , em segundos o balcão era assaltado por dezenas de indivíduos de todas as raças e países tanto africanos como asáticos empurrando-se e atropelando-se uns a outros,gritando, numa anarquia completa, onde persistia a lei do mais forte.Era algo incrível e digno de ver.
Então tomámos a decisão, e fomos todos, estava eu, Meca, Flores, o Torres Vedras e o Unhas além de Lamin pela sua condição de chofer, e Garrido encontrava-se em primeira linha,pegado ao balcão, com umas jeans e camisa branca e o seu chapéu de cowboy, que mal aflorava do mesmo.Nós encontravamo-nos pegados á parede esperando que abri-se o serviço do Check In, conversando ou dizendo estupidezes, isso sim que não me recordo.
De repente vê-se o empregado do balcão sair de uma porta de serviço do Aeroporto e dirigir-se ao seu lugar de árduo trabalho,digo árduo, porque em algum momento estando eu presente, tinha assistido aos empregados, abandonarem o posto ,por não aguentarem a pressão das dezenas de indivíduos de braços estendidos, quase esfregando os bilhetes de avião na cara e gritando,“Assma,Assma,Ana,Ana”.
Aquele dia a diferença, era que estava Garrido, e quando o empregado sai pela porta,uma avalanche de indivíduos,atirou-se ao balcão,empurrando o pobre Garrido contra o mesmo,engulindo-o,por completo, e segundos depois regurgitando-o, e elevando-o no ar por cima das cabeças e por inércia aquele pequeno Corpo começou a moverse no sentido contrário á pressão da avalanche como se de um balão se tratasse, até colocar-se atrás de todo.Quando termina, Garrido já com os pés assentes no chão,olha para nós,com o chapéu torcido e o cordel cruzando-lhe pela cara entre os olhos, diz-nos:
“Estão ver pá! Estes tipos são uns autênticos selvagens.Assim não se pode trabalhar.De que se estão a rir?Queria-vos ver aquí,pá”.
Sim nós riamo-nos porque a situação era caricata, e por ele ser assim de cabeçudo, pois todos sabiamos que aquela situação se podia resolver nos escritorios da Libian Airlines,quando se levantavam os bilhetes e bastava um café ou uma cassete de Bob Marley,ou Peter Tosh para facilitar isso.
A Garrido passávamos-lhe factura pelas suas actitudes,por ser egoísta,cabeçudo,egocentrico,por falta de caridade e respeito.
No correio que recebíamos ás vezes as familias enviavam-nos um caque, recém feito para amenizar-nos a estadia, pois esta era dura e difícil de aguentar, e nós compartíamos esses pequenos detalles familiares entre o grupo de amigos, excepto Garrido que os escondia para seu deleite em solitário, infrigindo um dos mandamentos veniais, que era o da Gula.Isso sim compartia o que nós aportávamos,mastigando como um pequeno roedor, devorando tudo como se fosse uma Marabunta.
Nós comentávamos o feio que era a sua actitude e as suas maneiras, sem o mínimo de respeito por quem compartia com ele os seus escassos doces que com carinho e dificuldade,por arranjarem um portador que se encargasse de transportar até nós um pequeno volume,com essas preciosas delicias.
Um dia resolvemos dar-lhe um lição,que sem querer foi-se do nosso controle.Tínhamos nos escritorios umas maletas de primeiros auxílios,e dentro havia umas tabletes de chocolate para a prisão de ventre,e resolvemos despojálas do envoltório para dessimular que era chocolate real,e pusémos em cima da mesa para que quando chegasse Garrido fosse por eles.
Assim sucedeu,Garrido entrou em minha casa,(era onde nos juntávamos todos os dias) e bradou:
“CHOCOLATE? Ó pá, eu também quero.”.A nossa resposta não se fez esperar dizendo-lhe:
“Come á vontade!”
“Estás como em tua casa!”
“O que é nosso é teu!”. Etc
Garrido movido pela gula começou a comer os quatro quadradinhos que tinhamos espalhado sobre a mesa, e nós olhávamos uns para os outros mostrando satisfação,por termos conseguido o objectivo,enquanto Garrido mastigava os chocolates como se fosse um Esquilo.
No dia seguinte o Sr. Garrido não aparece no trabalho,preocupados,á hora do almoço fomos saber o que lhe tinha passado.Estava vivo,mas debilitado.
Garrido aprendeu a lição,porque nos ultimos meses que esteve ali,cada vez que recebia algo de comer de Portugal,compartia conosco.
Hoje, aquí sentado na mesa da cozinha de minha casa,penso nesses momentos com uma grande nostalgia.Que será feito de Garrido,do Flores,de Lamin,do Unhas e do Torres Vedras?.Do Meca Alegria sei que morreu há uns 20 anos com um Cancro de pulmões.
Tenho muitas saudades deles,por o que compartimos e como compartimos, como autênticos irmãos independentemente da cor política,racial ou religiosa.Éramos uma família.
Sou feliz por os ter conhecido.
E também sei que fomos cruéis com Garrido,mas também fomos amigos dele.

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